Paulo Cezar S. Ventura

Sou feliz por opção e bem humorado por obrigação

Textos

AO TOQUE DOS SINOS
Ninguém soube dizer de onde, como e quando ele veio. Alguns dizem que ele simplesmente apareceu numa das grandes portas de casarões próximo ao solar dos Neves quase em frente à Funerária Ávila. Seus passos não foram seguidos nas ruas, ninguém sentiu o cheiro de seu perfume e tampouco se escutou bater nenhuma porta de carro. Apenas apareceu.

Lá estava ele. Alto, moreno, barba curta e negra. Cabelos negros e anelados com alguns fios brancos brilhando levemente à luz dos lampiões acesos ao anoitecer. Olhos também negros vigiavam calmamente carros, bicicletas e pessoas. Trajava um paletó de linho negro sobre uma camisa vermelha, calça bege claro e sapatos marrons. Elegante. De uma elegância que não feria os olhos, mas também não o deixaria anônimo em meio a uma multidão. Ao cair da noite as pessoas indo e vindo olhavam-no indistintamente. Olhares intrigados e admirados. As mulheres fitavam-no ao menos pelo canto dos olhos.

Algumas voltavam pelo mesmo caminho para observá-lo mais uma vez.
Com o cair da noite e o surgimento da lua cheia, o movimento no Largo do Rosário aumentou. Era uma sexta-feira de uma semana de muitas novenas, rezas, procissões, missas festivas tocadas pela orquestra da igreja, toalhas de renda nas janelas, enfeites nas ruas. Os sons dos sinos das igrejas se misturavam a foguetes e corais. Ele continuava em seu posto de observação. Calmo. Nenhum sinal de cansaço em seus olhos. Nenhuma urgência em seus gestos. Apenas observava.
De onde estava via-se todo o movimento do início da rua Santo Antônio, do beco da Romeira e da rua Direita. Escutava-se também o fervoroso murmúrio vindo da Igreja do Pilar, onde se realizava uma festa religiosa, como sempre ocorre na cidade.

De repente, uma das muitas mulheres que o olharam nesta noite chama-lhe a atenção. Era morena clara, olhos verdes indefinidos, cabelos longos e ondulados brilhando à luz da lua cheia e dos lampiões. O corpo bem feito oscilava harmoniosamente aos passos em calçamentos irregulares. Usava um pequeno decote que delineava os seios. A blusa sem gola deixava seu belo pescoço à mostra. Este pequeno detalhe e a firmeza do olhar que ela lhe lançou trouxe-o do mundo dos sonhos por onde seu pensamento transitava.

Uma troca de olhares por longos segundos. Daqueles cuja linguagem só seus donos entendem. O corpo da mulher tremeu levemente e ela não soube, por um instante, o que fazer com o véu e o terço em sua mão direita. Apressou os passos e entrou na igreja. Deu uma última e rápida olhada para trás, na escadaria, enquanto cobria desajeitadamente com o véu branco a cabeça. O suficiente para perceber que ele havia saído do lugar onde estava havia algumas horas.

Terminada a cerimônia religiosa, ela foi uma das últimas a sair da igreja. Não queria correr o risco de encontrá-lo de novo. Aquele leve tremor denunciava sua fragilidade diante daquele olhar penetrando-lhe até a alma. Se ele de novo a olhasse ela não teria coragem de negar-lhe seja lá o que seu olhar a pedisse.

Ao descer as escadarias sentiu-se aliviada por não o ver. Já não havia muita gente na rua. Era tarde, mas os sinos ainda repicavam. Caminhou apressada em direção à rua Santo Antônio. Ao chegar ao beco atrás da igreja do Rosário, de onde avistam-se as torres iluminadas da Matriz de São Francisco, um arrepio gelado percorreu sua espinha dorsal, das nádegas à nuca. Virou para os lados e viu uma figura saindo das sombras. Não sabia se corria ou se voltava. Seu corpo tremia. Deixou cair o véu e o terço. Sua boca entreaberta não emitiu nenhum som.
Ele apanhou gentilmente o véu e o terço, sorriu e sugeriu que seguissem. Ela então começou a caminhar a seu lado. Apesar de todo seu fervor durante as orações viu-se prestes a cometer o que, para seus familiares, era pecado. Para ela nem tanto. Já o cometera outras vezes. Em algumas vezes sentira um misto de paixão e culpa.

Os dois caminharam pela rua Santo Antônio até desaparecerem em suas curvas antigas e envoltas em sombras. No exato instante em que os sinos calaram ouviu-se um grito. Logo depois o silêncio das cidades do interior, quebrado apenas por latidos e miados.

Nunca mais viram o desconhecido. Mas a mulher, por alguns dias, andou com um lenço cobrindo o pescoço. Amigas íntimas disseram que era para esconder as marcas desenhadas, como uma tatuagem. E ninguém conseguiu entender o sorriso sempre presente em seus lábios e a leveza de seu andar de sábado em diante.

Paulo Cezar S Ventura
Enviado por Paulo Cezar S Ventura em 20/10/2020
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