AMAZÔNIA, ENQUANTO DURE
Pode-se chamar de sorte, pode-se desejar cuidado, mas uma estadia de seis meses na Amazônia, essa antes desconhecida de minha vida, foi surpresa, em primeiro lugar, mas também merecimento. São coisas que uma carreira de pesquisador pode oferecer. Poxa, seis meses neste mundo verde é uma oportunidade de ouro. Penso mesmo em conhecer essa terra onde os indígenas têm trinta e duas palavras diferentes só para diferenciar os diversos tons de verde. Já pensou nisso, quanta riqueza linguística? Trinta e duas palavras! Contei vantagens para uma amiga chinesa e ela me confidenciou: as tribos da Sibéria chinesa, gelada, têm também trinta e duas palavras para diferenciar as diversas tonalidades de branco. Coincidência, ou trinta e dois é um número cabalístico em questões de comunicação tribal?
Apenas mais um assunto para conferir in loco, porque uma viagem como essa precisa ser bem programada. E foi, no meu caso. O tempo foi curto, mas o suficiente para eu traçar um plano de viagem, um roteiro cultural além do trabalho. Pegar um barco e subir o Rio Negro até São Gabriel da Cachoeira estava em meu roteiro, lógico. Comprei uma rede nova e confortável para minhas noites no barco, mal dormidas, já sabia disso. Porque não é fácil dormir em um barco em movimento, com aquele calor úmido típico, além da paisagem, lógico. E chega o dia marcado para a viagem mais multi transporte que já fiz. Trem, ou melhor, metrô de superfície, avião, ônibus na chegada em Manaus e depois barco, aquele esperado para subir o Rio Negro. De Brasília a Manaus a vista aérea foi a mais variada possível. O marrom e verde do cerrado (ex-cerrado, hoje agronegócio puro, que enriquece uns e empobrece outros, além da terra) vai sendo substituído gradualmente pelo verde e azul, mata e água. Apesar do desmatamento, a mata teima em sobreviver. Precisa sobreviver. E a mata amazônica precisa sobreviver. Ela me chama como se eu fosse uma criança perdida que deixou a casa, aos sobressaltos, anos atrás. Mas, minha memória de infância, com os sonhos de meus antepassados distantes, me chama, aos sussurros de mãe abandonada que espera a volta de sua criança. Eu me perdi, no entanto. Ali, subindo os poucos degraus do barco que me conduzirá rio acima, ouvi a voz da mãe e me senti em casa. A visão daquela cachoeira cortando a montanha como faca na carne, me fez lembrar de minhas origens, como se eu já estivesse naquele lugar, como se o lamento coletivo de uma nação nativa saísse de meu peito, como se a voz fosse a minha, e meu animismo renasceu ali. Eu no meio do rio. Hora de aprender o nheengatu, uma das línguas faladas em São Gabriel da Cachoeira, e começar a pensar como um indígena e lutar contra o mundo que só pensa no nióbio da região. Tentar impedir que a região se torne mais uma mina geral vendida às Vales da vida, com seus brumadinhos marrons nos verdes amazônicos. Não aprendi a falar a língua, a não ser alguns sinais tão comuns aos viajantes do mundo. Pelo menos convivi com a tribo algum tempo, participei de seus rituais, fui aceito como ser humano ao modo indígena, me vesti como um deles, tomei seus chás, alguns alucinantes, participei de longas caminhadas, acampei nas beiras de rios, encontrei cobras enormes pelos caminhos, acordei com uma delas em minha rede. Na verdade, sonhei com a Cobra Grande, cuja lenda nos informa de olhos luminosos como dois faróis, pronta a engolir visitantes desavisados que se aventuram sem cuidado nas fortes corredeiras. Foi apenas susto e medo. Quase me esqueci serem apenas férias auto concedidas para visitar aquele mundo desconhecido que tanto me atraia. Que, apesar do desapego e da vontade, tenho algo aqui em baixo desse Brasil que também me chama: uma família, um amor, alguns amigos, pessoas carentes de histórias, aquelas que devo escrever e contar ao mundo: minha história, a real e a inventada, embora eu não saiba qual delas é a real. Além disso, um livro esquecido apareceu em minha mochila e me trouxe de volta. Carl Gustav Jung e sua frase: “a análise é um experimento de laboratório e não realidade”. Jung, seu filho da mãe. Só pra te chatear, afirmo que a realidade é um experimento da mente. Com isso quero te dizer que não dá nem para afirmar que meu relato seja uma análise de meus sonhos ou de imaginação simples e pura. Além disso, trouxe um pouco da cura da terra, em forma de música (Yube Mana Ibubu)* . Te peguei? Não são verdades! De incertas saudades Pessoas-coisas são. Assim diria Riobaldo**. * https://www.youtube.com/watch?v=m45EoWrlNEg (a música é dos povos Kaxinawá, que não habitam na região de São Gabriel da Cachoeira, mas fala da cura da terra. ** VENTURA, Paulo Cezar S., Haicais do Riobaldo, Páginas Editora: Belo Horizonte, 2022.
Paulo Cezar S Ventura
Enviado por Paulo Cezar S Ventura em 03/08/2022
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