Paulo Cezar S. Ventura

Sou feliz por opção e bem humorado por obrigação

Textos

OS SINOS AINDA DOBRAM
Os sinos da matriz tocam sempre quando um evento, às vezes bem sinistro, ocorre na cidade. Tocam para chamar fieis à missa, tocam anunciando casamento ou morte, tocam em datas importantes para os rituais das igrejas da cidade. Nessa cidade onde os sinos ainda dobram, residi por três anos apenas. Os sinos da matriz nunca saíram de meu pensamento. Dobrando os toques dos rituais, se tornaram meu inferno.

Foi num instante desses, com os sinos repicando festivamente, em uma tarde do mês de abril, que pela última vez bati os olhos em Adriana. Apenas sua imagem ficou em mim. Quando os sinos tocam, ainda vejo seu rosto emoldurado naquele retrato que um dia joguei na fogueira para não me lembrar mais dela. Mero engano. A foto se queimou na fogueira, mas sua imagem ainda me queima por dentro.

Ela nunca mais deu notícia, mesmo as pessoas suas conhecidas não sabem por onde ela anda. De vez em quando faço uma busca na Internet, onde a gente sempre encontra informações de pessoas que não vemos há tempos, e nada. O senhor Google não sabe de Adriana. Como alguém pode não ter uma vida com pelos menos alguns dados que sejam públicos?
Esquecê-la é impossível, o jeito foi deixar sua imagem armazenada em minha memória ram, ocupando o mínimo de espaço, porque a vida continua.

Foi então que conheci Marieta, que namorava comigo, escondido, pois era noiva de um cara que jogava futebol e vivia viajando. Quando ele viajava, ela vinha se enroscar comigo. Penso que ele sabia e imaginava que ela estava sendo bem cuidada, pois alguns de seus amigos sabiam. Isso durou até que ele se machucou seriamente e teve que mudar de profissão. Casaram-se e me deram o primeiro filho como afilhado.

Conheci também Salete que fazia brochetes para vender na feira das manhãs de domingo. Juntava no espeto o pimentão, a cebola e o pedaço de carne. Dizia ser alcatra, mas, na verdade, era acém e me pedia para confirmar, pois eu havia participado da preparação. Salete gostava de cantar, mas cantava em falsete e dizia ser cantora lírica. Aprendera em um cabaré quando esteve passando uns tempos com a tia na capital.

Mas o que terá acontecido com Adriana? Tinha parentes no Rio de Janeiro, em Santa Tereza. Em uma viagem ao Rio, peguei o bonde e me bandeei para a casa deles. Quem sabe eles me informariam sobre ela? Ninguém sabia. Como ela tinha uma ascendência judia, imaginavam que ela teria ido para Israel. Se fosse isso, ela devia estar bem e trabalhando em alguma comunidade de trabalhadores rurais, formada que era em Agronomia.

Salete continuou vendendo brochetes na feira, mas não quis mais que eu a acompanhasse. Começou a namorar um cozinheiro e agora vendem outras guloseimas mais, além do brochete.
Foi então que conheci Alice. Diziam ser doida, porque recitava sem parar o poema de Alphonsus de Guimarães:

“Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu
Viu outra lua no mar”

Alice era fascinada pela lua cheia. Cantava para a lua, fazia versos para a lua e rezava para a lua num estranho ritual. Doida, diziam. Eu acreditava que ela fosse mesmo doida, mas doida comigo.

Em uma noite de lua cheia, Alice se pôs a cantar na beira do rio. Não havia mar na cidade entre montanhas. Não havia riscos de Alice pular no mar, pensava eu, como Ismália fez, no poema:

“E como um anjo pendeu
As asas para voar
Queria a lua do céu
Queria a lua do mar”

A lua cheia, no entanto, foi eclipsada e o céu escureceu. Aí foi que Alice se inquietou. Que terá acontecido com a lua cheia, assim, tão de repente? Pensou logo que seria uma maldição pairando no horizonte e que algo ruim aconteceria. Tirou as roupas e entrou no rio. Lembrou-se de Ismália que foi buscar a lua no fundo do mar e imaginou que ela poderia estar escondida numa grota do rio.

“As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par
Sua alma subiu ao céu
Seu corpo desceu ao mar”

Eclipses passam. Mas, Alice, tão doidamente, ficou procurando-a no fundo do rio e não viu que a lua voltara ao céu. E ninguém mais a viu também.
Resolvi não ter mais ninguém comigo. A imagem de Adriana me bastaria. Anos depois, quando eu já havia mudado da cidade do interior, vi Adriana com seus cabelos brancos andando pelas ruas de São Paulo, calmamente. Hesitante fiquei, mas dei uma apressada nos passos e a alcancei. Interroguei-a. Queria, mesmo anos depois, uma resposta.
- Estava ficando doida naquela cidade. Não aguentava mais aqueles sinos. Não queria escutá-los anunciando a minha morte, ou a sua. Parti.
- Partiu, e era abril. Semana santa, quando os sinos dobram mais alucinadamente. Meu destino era amar essas mulheres loucas? Ou um pouco desarranjadas mentalmente? Se for para ser assim, eu me entrego.

Paulo Cezar S Ventura
Enviado por Paulo Cezar S Ventura em 31/10/2022
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